A falta de oferta de casas para comprar ou arrendar em Portugal, apontada como uma das principais responsáveis pela subida dos preços da habitação, arrasta-se há anos, mas a crise agudizou-se desde então. Numa tentativa de fazer face ao problema, o Governo avançou com o programa Mais Habitação, do qual faz parte o simplex do urbanismo, que promete tornar os processos de licenciamentos mais rápidos e ágeis. Promotores, investidores e mediadores receberam bem as medidas – há muito reclamadas pelo setor –, mas reconhecem que não estão isentas de riscos, a vários níveis.

O idealista/news quis ouvir os profissionais que estão no terreno, a promover projetos imobiliários, a construir empreendimentos e a mediar a compra e venda de casas, e o que têm a dizer sobre o novo diploma que permite transações sem a apresentação obrigatória de licença, por exemplo. Afinal, que vantagens e desafios esconde o simplex do licenciamento? Também o IMPIC, regulador do setor da construção e mediação, se pronuncia em declarações ao idealista/news, admitindo vir a emitir “recomendações de boas práticas ou esclarecimentos prudenciais sobre esta questão”, se for necessário.

Regra geral, mediadores e promotores consideram que a reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo será benéfica para todos. Um bom ponto de partida, dizem, para dinamizar o setor imobiliário e trazer mais casas com preços acessíveis para o mercado português, ao eliminar burocracias e demora na apreciação dos projetos por parte das autarquias. Ainda assim, o simplex do urbanismo também traz desafios, e até mesmo alguns perigos. Os players do setor defendem, portanto, que a celeridade influenciará positivamente a construção e a diminuição dos preços das casas, mas alertam que em termos de desburocratização, qualquer que seja o mecanismo utilizado, não deve pôr em causa a segurança do investimento.

Recorde-se que o Decreto-Lei n.º 10/2024, vem “eliminar licenças, autorizações e exigências administrativas desproporcionadas que criem custos de contexto”, numa lógica de “licenciamento zero”. A grande maioria das 26 medidas do simplex entra em vigor no próximo dia 4 de março de 2024 – apesar de algumas já terem efeitos desde 1 de janeiro. Uma das mais polémicas e que tem suscitado maior debate está relacionada com a compra e venda de casas, deixando de ser obrigatório apresentar, por defeito, a licença de utilização na hora da aquisição. O idealista/news aprofundou o tema neste guia, que vale a pena ler.

simplex urbanístico
Freepik

Massimo Forte, consultor, formador e coach, especializado no setor imobiliário, reconhece méritos ao novo simplex, como a rapidez, mas considera que medidas deste género, ou seja, “que atuam como um penso rápido para resolver situações complexas que duram há anos, como é o caso dos processos de licenciamento”, não são “muito ecológicas no sentido de garantir a certificação da utilização do bem imóvel”. “A vantagem da rapidez que a medida traz, contrasta com o risco do facilitismo”, defende.

Uma visão partilhada por Hugo Santos Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII). O responsável mostra-se satisfeito com a entrada em vigor do diploma, mas também tem dúvidas. “Continuar como estamos não era a solução e era mesmo inadmissível nada fazer, pelo que encaro este simplex como um primeiro passo, importante e necessário, na luta contra um dos maiores cancros da nossa economia e diria mesmo da nossa democracia, a burocracia”, salienta, deixando no ar a possibilidade de o Governo poder ter “ido longe demais em alguns casos”, ao comprometer a segurança jurídica inerente a essa desburocratização.

O papel determinante de mediadores e promotores

  • As vantagens do simplex urbanístico

Para Ricardo Sousa, CEO da Century 21 Portugal, a adoção do simplex nos licenciamentos urbanísticos traz consigo “um desafio coletivo de adaptação, mas também uma oportunidade para melhorar a eficiência e a qualidade do setor imobiliário como um todo”. Não tem dúvidas de que a implementação do simplex “é um passo crucial e positivo para o setor”, nomeadamente para tornar os processos mais ágeis e transparentes, “o que se traduz em benefícios significativos para todos os intervenientes do mercado”. Esta nova abordagem, representa um “excelente ponto de partida”, mas exige “uma adaptação dos vários stakeholders do mercado imobiliário a esta realidade mais dinâmica”.

Também Alfredo Valente, da iad Portugal, não tem dúvidas de que o novo pacote legislativo “poderá contribuir para a construção mais célere de novos empreendimentos”, o que se traduzirá em “mais oferta de imóveis no mercado e, consequentemente, uma descida de preços destes”. Uma visão partilhada por Guida Sousa, diretora coordenadora nacional da Decisões e Soluções. A mediadora acredita que o “simplex urbanístico irá dinamizar o setor imobiliário em Portugal, colocando mais casas no mercado português e reduzindo custos”, destacando, por isso, como vantagens:

  • menor burocracia - flexibilizando os procedimentos de controlo prévio urbanístico e de ordenamento do território;
  • aumento da oferta de habitação;
  • a redução dos encargos dos promotores e investidores no ramo imobiliário;
  • e a aceleração dos investimentos neste setor.

"Como sempre tenho defendido, todas as medidas que surjam como incentivo à disponibilização de mais casas no mercado, sobretudo num ecossistema habitacional tão peculiar como o nosso, são bem-vindas. Esta nova lei vem, principalmente, agilizar processos, reduzindo alguma da burocracia inerente e simplificando procedimentos, e esse facto, só por si, já será uma mais-valia", argumenta Rui Torgal, CEO da ERA Portugal. 

Na visão do especialista, este decreto-lei "poderá vir a resolver um problema há muito identificado no setor e que se prende com os imóveis que não se podiam vender, e que estavam a degradar-se, por falta de licença de utilização". "No fundo, é um decreto-lei que poderá vir a colocar mais casas no mercado e, com um parque habitacional tão limitado como o nosso, isto é sempre positivo", salienta. 

Por sua vez, Fernando Batista, presidente do Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção (IMPIC) prevê um impacto positivo no setor imobiliário, nomeadamente na promoção imobiliária e em especial no setor da habitação, da aplicação da reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo.

O líder do regulador do setor destaca a “simplificação das formalidades relacionadas com a compra e venda do imóvel, eliminando formalidades que não representam valor acrescentado, nomeadamente a obrigação de apresentação de autorização de utilização e da ficha técnica de habitação nos atos de transmissão da propriedade de prédios urbanos”.

simplex urbanístico
Freepik

No entanto, Fernando Batista frisa que a “exigência sobre o mercado da mediação imobiliária é agora maior, sendo para isso necessário ter conhecimento dos requisitos urbanísticos e informar, sempre, o comprador de todos e quaisquer ónus ou encargos que possam existir numa transação imobiliária”. Nesta matéria, garante ao idealista/news, e sempre que se considerar necessário, o IMPIC irá emitir “recomendações de boas práticas ou esclarecimentos prudenciais sobre esta questão”.

Do lado das promotoras, José Cardoso Botelho, CEO da Vanguard Properties, realça como principal vantagem do simplex dos licenciamentos urbanísticos “a modelação e uniformização dos comportamentos das câmaras”. “Este diploma visa claramente corrigir práticas municipais erradas, em particular no que se refere à demora na apreciação dos processos, à insistência das câmaras em analisar aspetos que a lei há muito tempo tinha retirado da sua competência e à exigência de procedimentos e solicitação de documentos redundantes e desrazoáveis”, diz.

“O simplex no licenciamento vem ajudar a uma maior clarificação e agilização em prol da celeridade processual e a uma diminuição geral da burocracia. Contudo, é importante que exista um esforço conjunto de todas as entidades envolvidas num processo de licenciamento, desde a autarquia até às entidades externas que têm de ser consultadas e no prazo de resposta das mesmas. O mesmo acontece com os arquitetos e engenheiros envolvidos nos projetos, que ficam com obrigações reforçadas de zelar pelo cumprimento das normas e regras, por via da responsabilização reforçada dos atos desenvolvidos”, concorda Francisco Carmona, CEO da promotora Alma Development.

Na opinião de Mário Almeida, administrador da FERCOPOR, "as novas medidas vão trazer uma necessidade de equilíbrio entre duas vertentes: simplificação e responsabilização". "Isto é, por um lado, sem dúvida que estamos perante medidas com capacidade para criar processos menos burocráticos, mais ágeis, uniformes e transparentes. É uma simplificação grande, para as áreas da construção e do imobiliário, o que representa uma vantagem".

"Por outro lado, esta simplificação não pode existir, na nossa visão, sem responsabilização. Acreditamos que todas as entidades e empresas terão de assumir uma postura de elevadíssima responsabilidade no desenvolvimento e venda dos seus projetos, não vendo nesta simplificação uma porta aberta ao alívio de regras urbanísticas ou padrões de qualidade", acrescenta.

  • Riscos e desafios na construção, venda e compra de casas

Para a CEO da Zome, Patrícia Santos, com a extinção do alvará de autorização de utilização, e a dispensa da certificação da ficha técnica da habitação, as transações imobiliárias “ganham agilidade”. No entanto, sublinha, esta simplificação não vem isenta de riscos. “A possibilidade de compras sem apresentação de licenças pode comprometer a segurança jurídica, aumentando o perigo de aquisição de propriedades com irregularidades e limitações na obtenção de crédito habitação. O equilíbrio entre simplicidade e resguardo legal torna-se, assim, uma consideração vital neste novo cenário de licenciamentos urbanísticos”, defende.

Com as alterações introduzidas pelo novo simplex, a obrigação de apresentar a ficha técnica de habitação e a autorização de utilização no momento da celebração do contrato de compra e venda foi eliminada. Ainda assim, e apesar de o decreto não abordar expressamente a dispensa desses documentos na mediação imobiliária, a responsável da Zome sugere que seja mantido o procedimento habitual. “Este é essencial para garantir a segurança jurídica entre as partes envolvidas, assegurando que o imóvel pode ser transacionado para o fim desejado. A apresentação desses documentos é uma forma objetiva de comprovar essa adequação. A missão da mediação imobiliária deve permanecer inalterada: assegurar que cada transação seja conduzida com integridade e em conformidade com os interesses de ambas as partes”, assegura.

simplex urbanístico
Freepik

Os mediadores consideram que continua a ser do interesse de todos os envolvidos manter procedimentos que reforcem a confiança e a objetividade no processo de compra e venda de imóveis. Ricardo Sousa vai mais longe, e diz mesmo que se trata de uma “responsabilidade ética e profissional dos mediadores fazer o disclosure completo e transparente dessa informação aos potenciais compradores”. Por conseguinte, a “inclusão destes detalhes nos anúncios não só promove a transparência, mas também reforça a credibilidade do mediador imobiliário e facilita o processo de decisão do comprador”. “É claro que o mediador deverá prestar todo o apoio e esclarecimento ao comprador em todo o processo por forma a que este realize uma compra informada”, concorda Alfredo Valente.

Guida Sousa partilha dessa mesma opinião. “Os mediadores devem não só alertar os compradores a pedir a licença antes de avançar com o negócio, mas especialmente garantir que antes da realização da venda têm em sua posse toda a documentação sobre o imóvel, como licenciamentos e ficha técnica de habitação, por forma a garantir as condições de segurança e habitabilidade da casa que os seus clientes vão adquirir”.  "O profissionalismo e a transparência devem estar sempre presentes em qualquer negócio, independentemente do setor", frisa Rui Torgal.

“O público em geral, como desconhecedor dos processos, pode achar que a licença é apenas mais uma burocracia, quando é algo bastante sério para garantia da utilização do bem, o facilitismo descontrolado pode gerar um potencial cenário num breve futuro em que teremos uma série de imóveis que não se sabe bem se estão aptos para utilização e no caso de necessidade de revenda, pode levar ao surgimento de dúvidas que impeçam a transação do imóvel”, diz Massimo Forte.

“Tal como os bancos que já referiram que não vão realizar hipotecas e transações sem licenças, apelando ao princípio da prudência e garantindo desta forma que o seu cliente mutuário, e também a sua garantia imobiliária, têm de facto condições para que não se incorra em situações de indisponibilidade de transação ou de impossibilidade de execução, eu também aconselho a mediação imobiliária a utilizar o mesmo princípio para defesa e proteção dos seus clientes atuais ou futuros, porque afinal, os clientes compradores de hoje, será quase sempre potenciais vendedores mais à frente”, defende o especialista.

simplex urbanístico
Freepik

José Cardoso Botelho concorda que os principais riscos do simplex dos licenciamentos urbanísticos prendem-se com a menor proteção do consumidor, em particular, no que se refere à exibição do alvará de utilização e entrega da ficha técnica de habitação aquando das escrituras. Na opinião do promotor, seria importante distinguir “as compras entre profissionais, nas quais podia ser acordada a não exibição do alvará de utilização, das compras realizadas por consumidores finais, nas quais o alvará de utilização é um elemento de conforto quanto à conformidade da fração adquirida e, em geral, quanto à legalidade da construção adquirida”.

Além disso, o CEO da Vanguard Properties salienta outras duas preocupações inerentes a este diploma, nomeadamente a “reação dos bancos e a potencial resistência que as câmaras – não auscultadas neste processo – possam ter na implementação das alterações legislativas, o que poderia significar, em situações limite, fazer, pela prática, letra morta deste diploma, com o inerente aumento da litigiosidade”.

Na opinião do promotor, medida não surtirá mais ou menos efeitos nas vendas em planta ou noutras fases dos projetos. “Não parece haver distinção: na venda em planta já havia a confiança de que o promotor contratado seria capaz de concluir e entregar uma fração acabada de acordo com o projeto e com a lei e agora essa confiança passa igualmente a ter de existir na venda após conclusão do projeto”, argumenta.

"É verdade que precisamos construir mais, trazer mais oferta de casas, nomeadamente acessíveis, ao mercado, e este primeiro passo (...) é bom. Fica, porém, a dúvida de saber se não terá sido um 'passo maior que a perna'. Desburocratizar sim, mas não a todo o custo. Não existirá forma de acabar com a burocracia sem que isso acarrete insegurança, que possa gerar riscos acrescidos e por isso, afinal, mais custos?", esta é a dúvida que Hugo Santos Ferreira, representante de investidores e promotores, deixa no ar. Para o responsável, se o objetivo passa por construir mais habitação e incentivar os promotores imobiliários a fazê-lo, é premente desburocratizar, mas nunca comprometendo a segurança jurídica inerente a essa desburocratização. 

Fonte Idealista